Crise

Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que poesia é truque...

Mario Quintana - Sapato Florido, 1948.


quinta-feira, 24 de abril de 2014

VIAJAR É MAIS QUE PRECISO*


Preparou-se para aquela
que não sabia ser sua pequena,
grande ou maior viagem.

Preparou-se para aquela
que não sabia ser sua amena,
áspera ou derradeira viagem.

Preparou-se para aquela
que não sabia ser penúltima,
ou mais uma daquelas passagens.

E o fez com o mais cuidadoso
e lúcido, ácido e ávido pensar.

Sabia que devia; que havia 
de assim melhor ser: para ele
um singular e sobreviver:

Fosse na Luz aguda e infinita
Ou na Treva arguta e maldita.

Mas, sem rancor ou medo,
ímpar Fé ou maior descrer,
sabia que já estava pronto.

Mãos e olhos fixos; o corpo
disposto, as mãos desatadas:
nos lábios as últimas palavras.

Por entre os dedos, o Tempo,
em horizonte perto ou distante,
não mais lhe ditava as regras!

Ele, nem vítima, herói ou rei, 
não mais construía verdes pontes. 
Agora, só admirava o abismo.

Assim, ciente de que o coração;
da sua, nem árdua, original, difícil 
e inversa decisão, sem medos 
ou oração, já não vinha tão cedo. 



em "Dunas de Marfim"


[Arte: Gabiel Pacheco]

quarta-feira, 16 de abril de 2014

A GRAMÁTICA DOS ANJOS*


Vejo a aldeia
através do espelho.
Sei que tudo espera:

Todas as dores, todas as letras;
o Verbo vivo inteiro.

Vejo a aldeia
através do espelho.
Sei que tudo esmera:

Todas as flores, todas as torres;
a gramática dos anjos.

Vejo a aldeia
através do espelho.
Sei que tudo escuta:

Todo alarde, todo silêncio;
o completo futuro possível.

Através da aldeia
vejo o espelho.

Que me descobre e desnuda
sem cerimônia ou fé.

Através do espelho
vejo aldeia:

Pequena ou grande,
gosto de, ao longo da Baía,
desvenda-la à pé!

*Jairo De Britto, em "Dunas de Marfim"

A FALSA IDADE DO TEMPO*


Não há Tempo pra Tudo:
nem bem se planta, colhemos
algo de bom ou mau 
que nunca sequer pretendemos.


Não há Tempo pra Tudo:
nem bem se nasce, aprendemos
a chorar as lágrimas quentes;
primitivas - que nunca sabemos. 

Não há Tempo pra Tudo:
cedo ou tarde, todos percebemos
quão breve é a Vida que temos;
tão falsos os versos que lemos.

*Jairo De Britto, em "Dunas de Marfim"


[Arte: Eleni Tsami]

MÃOS À OBRA DOS VELHOS SALMOS*



Minhas mãos não abraçam venturas. 
Já não há venturas além do arco-íris.

Minhas mãos não aventuram: aturam. 
Já tão desnaturadas, buscam ares vis.

Minhas mãos são sósias nada graves.
Mas traves, há muito desmascaradas.

Minhas mãos não aplaudem turbas,
após as curvas que teu corpo oferece. 

Mãos sacanas: noutras ilhas buscam
rios, ruivas solares; outras Havanas.

Mãos que sonham paupérrimas rimas.
Puxo teus cabelos como caras crinas.

Mãos que mais sabem a pão de mel:
que arremedam aquela sala-de-estar
do bem-estar dos lábios do sol no céu.

Mãos cansadas, velhas, rotas, árticas;
que arremessam o pão e alimentam, 
na rua, circos e fogueiras fantásticas. 

Mãos que sempre roubam e amam,
com fome, a mais próxima fêmea.

Mãos que aliciam e amam, sem nome,
irmãs safadas, acesas, atentas à noite!

(Mãos que, alertas, apertam outras)

Mãos que desatam nós e gargantas;
que caçam palavras em vastas ravinas.

Mãos que desobedecem e aquecem
cascatas, flores e pernas - vão açoite!

Mãos que reconhecem o corpo alado,
planícies, portos e rostos além demais.

(Mãos que afogam as datas marinhas)

Assim, como quem não quer nada:
entre uma e outra suave braçada.

*Jairo De Britto, em "Dunas de Marfim"

A ÚLTIMA VIAGEM*





Eu, já dentro 
do vazio elevador.

Ele, no outro lado;
no longo corredor.

Entre nós, a mala 
– grande! 

Mas não maior 
que minha imensa Dor.

Eu, olhos molhados,
disse:


“Adeus, Meu Filho!”

(Ali, escapou-me – por aflição)

Ele, olhos surpresos,
peguntou:
“Porquê 'Adeus', Papai?”

(Então, não intuí a premonição)

Eu, perdido no peso dos anos, 
respondi:
“Quis dizer 'Ciao', Meu Filho.”

(Mas ali, não cabia disfarce – Perdão) 

Nossos olhos, quatro ilhas de Amor,
entendiam que o táxi, na garagem,
esperava. 

(Assim foi – a minha última viagem) 

Jairo De Britto, em “Dunas de Marfim”