Crise

Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que poesia é truque...

Mario Quintana - Sapato Florido, 1948.


sábado, 21 de setembro de 2013

GOSTO DE VITÓRIA* (Crônica)


"Gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo do verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como pão de centeio. Palavras que cheiram a feno e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol." 

 Eugénio de Andrade, em "Rosto Precário"

 Ela colhe flores, cata folhas, conchas e coleciona fotos de gaivotas e Andorinhas do Mar. Do mar que tudo permeia, que salga a Ilha de Vitória e as outras menores em torno. As flores, silvestres, são raras surpresas de fundo de quintal. As folhas, ela gosta das bem exóticas, ainda que nem todas caibam entre as páginas de seus maiores livros. As fotos, ela distribui em dezenas de álbuns de cores e propósitos os mais suaves.

Ela acolhe os amantes com cético ar de marinho Penedo; com a Pedra dos Olhos ávidos nem sempre de amor.

Ela os seduz nas praias, Camburi de costas ensolaradas! Usa armas, artes e manhas fatais: o sol, a lua, o sal, a melhor prosa ou a mais barata pornografia.

Ela os mantém submissos e ardentes com sábias e sacanas carícias de púrpura paixão; os enche de júbilo, decorando seus corpos com mãos de argila num alfabeto pagão.


 Ela observa os homens, mulheres e crianças como o vôo das gaivotas e andorinhas que desenham seu litoral. Na ponta da Língua, todos sentem sua Baía.

Ela imagina: "Como são livres, pobres e lindos! E como nem disso desconfiam!" Às vezes, tenta classificá-los como às gaivotas e andorinhas. Logo desiste: "Há tantas espécies de homens. Mais fácil tentar compreender os pássaros".

Ela gosta de andar por entre e ler os nomes de suas ruas e ladeiras, inventariá-las em letras góticas espalhadas em grandes folhas de papel schüller. Ali, onde com lápis especiais e ouro em pó, desenha, grava e recompõe seu casario, enaltecendo sua geografia.

 Ela sabe abrigar poetas, tolerar jornalistas e políticos, e guardar suas dúvidas sobre as reais intenções dos cronistas. Ainda assim, com sua geografia aviltada e seu Vento Sul atrevido, consegue entreter leitores sem maior cerimônia: enquanto cata conchas e folhas, enquanto colhe flores e reúne pássaros na gaveta.

 Ela é anônima - tamanha Baía não suporta mistério que o Manguezal não desvende. Está sempre presente e sabe aonde ir. No cais e nas praias, nos bares, nas escadarias e nos becos distribui seus passos e beijos salgados.

 Ela não tem medo de nada, sorri como poucas mulheres se atrevem; sonha folhas, flores, conchas, peixes e pássaros. Perto de homens, parece uma árvore: caule retorcido, galhos afagando o Vento Sul, raízes sugando a seiva dos séculos. Para crianças, se veste de nuvem redonda de azul e cara risonha. Às mulheres, oferece segredos de fêmea amorosa.

 Ela não é uma terceira pessoa - é Multidão quando grita! Não se acha tão bela e não se apaixona com facilidade. Quando acontece, mente: diz que não e se entrega.

Ela nunca me diz seu nome, não revela sua exata idade nem chora quando me despeço. Mas quando volto, quando revejo suas árvores, suas ruas, suas praças e pássaros; quando reencontro suas mulheres e ilhas, sempre me surpreendo! Eu não sabia que havia tantas espécies de andorinhas e gaivotas, tantas diversas cores, tantos humores alados. Também não sabia que ainda existiam mulheres, ilhas e cidades assim...

Jairo De Britto
 *Crônica publicada no 1º Volume da série "Escritos de Vitória" (1993). 
 Secretaria Municipal de Cultura e Esportes de Vitória, Espírito Santo - Brasil.
 Secretário: Joaquim Beato 
Coordenadora do Projeto: Miriam Cardoso

terça-feira, 17 de setembro de 2013

QUERÊNCIAS PATERNAS* (Crônica)

 [Tela de Alexander Averin]



I'm nobody______________________________Emily Dickinson
Are you nobody, too?
Then there’s two of us – don’t tell (…)
How dreary to be somebody!
How public, like a frog
To tell your name the livelong day
To an admiring bog (…)"

Quero tornar a ver as ondas, areia, rios e mar, que povoaram os pés dos sonhos
da minha infinda infância, quase de nada até agora bem dita.

Quero saber da história a começar pelo fim, sem medo de olhar pela janela do  
Trem Fantasma - nem de cair da Roda Gigante: aquele pôr do sol ainda repousa
sobre meus ombros. E sua lembrança envolve um pacto com o homem que comandava
a velha máquina do Parque de Diversões: parar, por pelo menos 10 minutos, no mais
alto ponto que chegássemos.

Queríamos ver horizontes sem cerimônias ou pressa; tornar a ver o sol morrer – cansado
de mais um dia por aqui iluminar e aquecer. E queríamos mais: ver o nem tão simples
e vagaroso romper da Lua, já em descarado alvoroço para toda a noite enfeitar.

Sei que você se lembra de nossas pequenas, grandes e fortuitas aventuras. Sim, porque
nossas viagens, gostávamos nós de fazê-las sozinhos. Como se, já então, soubéssemos
como haveria de vir a ser: uma Caixa de Tesouros reservada para guardar nossas todas
lembranças a dois. Só nossas, em únicos Tempo e Sabor.

Assim, seriam sempre mais saborosas que o melhor chocolate; que o mais quente
saquinho de pipocas; que os bichos de pelúcia que, a tiros, derrubávamos das prateleiras
dos Parques. Eu também me lembro que, quando tal ideia/aventura ia começando a surgir
em nossas cabeças, trocávamos olhares cúmplices...

Sabíamos que nada nos faria voltar atrás na escolha do nome que deveria ter nosso novo,
nada arisca, e querido filhote de cão. Assim foi com Delta, por exemplo.

Sabíamos que, em silêncio, pegaríamos nossas coisas e fugiríamos para uma praia
distante para ver e fotografar o Sol nascendo. Ou, para um hotel nas montanhas, à noite,
sem a ninguém avisar. Quando da Escócia, você já rapaz, lhe enviei um postal com rápidas
linhas, sabia eu como você iria sentir-se lá, no Sul da Califórnia (em Laguna Beach),
ao recebê-lo.

Há coisas que o Pai sabe. Há outras que o Filho sabe. E há as mais importantes: aquelas
que só ambos sabem! São os tais pequenos/grandes tesouros que, como a palavra  
Sabedoria, escrita na areia e apagada pela primeira das pequenas ondas, só nós vimos
surgir, desaparecer e sua razão compreender...

Agora, lhe digo: quando eu choro, soluço trovões! E quando escolho minhas armas, uma
é sempre daquelas espadas que descansam à beira de cercas ou muros (de São Jorge),
ou que dispostas estão na Távola Redonda.

Hoje, eu lhe digo: tenho chorado muito. Mas sei que, quando luto, enfrento dragões que
saltam do meu coração para os vales verdes: belos mas não menos escuros que aqueles
que atravesso ao voltar do Inferno!

Há anos não visito os Parques... E minhas “diversões” são tão diversificadas que há
muito já não merecem tal nome. Parques industriais invadiram meus olhos e vida sem
a menor cerimônia. E minhas mãos e mente servem a propósitos de guerras que nem
mais de santas se disfarçam.

Quando, e isso quer dizer todo dia, me preparo para lutar, sei que meu maior e mais
temível inimigo sou eu. Isso não me dá qualquer vantagem, como poderia um infante
supor.

Eu luto comigo; com um específico alfabeto! E minto sobre a enorme inveja, que sempre
escondo, de não ser capaz de a outros alfabetos enfrentar. Calo, quando tentam distrair
minha afoita vontade de ampliar espaços; de abraçar deuses que o próprio cínico pó da
História tenta esconder. Diariamente minto para continuar a acreditar que aquela
Infâncianão, nunca, jamais existiu.

Não! Nunca, jamais vivi tudo aquilo; aquele misto de cores, sabores, odores: olivas,
capim, benjoim, alface e alfazema, almíscar e Lua Cheia; as Águas de Março, os
riachos e tantos nomes de pedras e pássaros. E todos aqueles livros, tantos livros - que
uma vez fiquei tonto! Como peão de xadrez - ou aqueles, de som similar e grafia
diversa, aos quais se amarra um barbante e se solta no ar com a força da mão, nunca
mais voltei... Tonto de Saudade e Amor à Terra, engolir me deixei.

Hoje, eu lhe digo: olho para quase tudo com aquela enorme estranheza que a mim se
juntou, há séculos, como irmã - atada ao meu mais íntimo Ser. E quando luto, o faço
porquê nada mais me resta fazer. Tenho que combater o bom ou o mau combate; objeto
ou abjeto, quase nada mais importa, além das letras que junto – além das letras que
ajunto para, com as mãos em concha, chegar até você e lhe oferecer.

Meus filhos são meus outros dois alfabetos dessa matéria de almas que, ajuntadas,
chegam na hora certa de acertar contas com outras diversas dimensões. Eles são carne,
sangue, Alma e Verbo; a prima e única ideia de cada vez melhor ser – sem nada mais
a ninguém dever! Amém. 

*Jairo De Britto

Vitória, Espírito Santo - Brasil.
(13/Janeiro/2010)